Mulheres na tecnologia: o feminino e a inteligência artificial

Por que a diversidade é importante para a Inteligência Artificial ser realmente inteligente

A área da tecnologia ainda é extremamente dominada por homens. O número de mulheres em cursos de formação tecnológica, como Ciência da Computação, Informática, Sistemas de Informação e outros, ainda é bem menor que o de rapazes e a raiz desse problema vai fundo na estrutura machista da sociedade, que estereotipa meninas desde a primeira infância como incapazes ou menos inclinadas para as Ciências Exatas.

Esse tipo de machismo pode ser sutil e silencioso, como levar as meninas diretamente para a seção de bonecas e os meninos para a seção de carrinhos e videogames na loja de brinquedos, mas também pode ser mais escancarado e até perigoso, como assédios de vários tipos em ambientes com pouca presença feminina. Tais posturas e atitudes acabam desestimulando as meninas a investirem tempo e esforço em algumas áreas, por medo de hostilização e desvalorização.

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Inversão histórica

Não foi sempre assim. Nos anos 70, a primeira turma de Ciências da Computação do IME contava com 14 alunas e apenas 6 alunos. Já na turma de 2016, dos 41 alunos, apenas 6 eram mulheres, totalizando menos de 20% da turma. Nas décadas de 70 e 80, o computador era uma grande calculadora para fazer cálculos mais complexos e processar dados, sendo uma importante ferramenta das funções de secretariado, profissão muito atribuída às mulheres. Por isso, os cursos da área eram majoritariamente procurados por mulheres que queriam ascender na carreira.

Foi só depois da entrada do personal computer (PC) na casa e no cotidiano das pessoas, nos anos 90, que o computador ganhou uma aura “masculina”, principalmente por causa da explosão do mercado de jogos. Antes disso, os cursos de computação tinham mais a ver com matemática e cálculo e eram designados para as mulheres que quisessem se especializar para serem melhores professoras ou secretárias.

Desde sempre, há uma maior concentração de mulheres no ensino superior em áreas específicas: ciências humanas e sociais, letras, artes e algumas áreas da Saúde, como Enfermagem. Já os homens estão concentrados nas áreas de Exatas, como as engenharias e ciências tecnológicas, como por exemplo Ciência da Computação, que possui mais de 80% de público masculino. Esses dados representam de forma nada sutil a divisão sexual da força de trabalho na sociedade e como as tarefas são distribuídas desde a época do vestibular entre “cursos de mulher e cursos de homem”. Cursos de mais “prestígio” social, como Direito e Medicina, apresentam mais equilíbrio de público masculino e feminino, provando que as mulheres não são incapazes de passar ou acompanhar cursos considerados “difíceis”.

Falta representatividade das mulheres na tecnologia?

Sempre existiram mulheres interessadas em Ciência e muitas delas contribuíram de forma significativa para avanços em todas as áreas científicas, além de criarem invenções usadas até o dia de hoje. Porém, por que quase não ouvimos falar delas? Quantas mulheres cientistas você é capaz de citar? Provavelmente três ou quatro, se você já for da área ou tiver uma educação privilegiada. Isso é derivado do apagamento de mulheres na história científica, tendo seus inventos e descobrimentos roubados por homens ou simplesmente ignorados até que um homem revivesse as pesquisas e recebesse o crédito. No século 19 e 20, várias mulheres cientistas acompanhavam seus maridos também cientistas e constantemente sofriam com o descaso e com a falta de reconhecimento, que ia inteiramente para a figura masculina.

Um estudo feito pela Microsoft apresentou uma realidade na qual as próprias mulheres se sentem menos aptas para seguirem carreiras nas áreas de exatas e que esse é um sentimento que começa ainda na infância. O interesse e a aptidão começam a surgir, em geral, aos 11 anos, mas a partir dos 15 começa a evasão. O estudo mostra que, dentre as diversas razões para isso, estão a falta de modelos femininos na área para servirem de inspiração, falta de confiança na igualdade entre homens e mulheres e ausência de contato e incentivo nas áreas de cálculo e programação antes da faculdade.

Estereótipo do gênio nerd anti-social

Dentro desses ambientes, até mesmo acadêmicos, existe a caricatura do nerd super-inteligente, que adora videogames e computadores e é anti-social. Essa figura estereotipada foi mais enraizada ainda no imaginário coletivo e na cultura pop com a popularização do seriado americano “The Big Bang Theory“, que retrata as aventuras e a amizade de 4 amigos e cientistas (todos homens) e aborda que, apesar de serem mentes brilhantes, não conseguem se relacionar com mulheres e “pessoas comuns”.

Os protagonistas representam, cada um, um estereótipo atribuído ao gênio geek e diversos temas são trabalhados durante as temporadas: a arrogância e impaciência com pessoas fora da comunidade acadêmica e científica, TOC (transtorno obsessivo compulsivo), timidez excessiva e desarticulação social e até mesmo temas mais delicados, como machismo, misoginia e assédio.

A masculinização das áreas científicas e tecnológicas acaba afastando as meninas por causa desses estereótipos, tanto pela falta de identificação (dificilmente vamos entrar em um lugar onde não nos sentimos acolhidos e representados) quanto pela aura de “clube do Bolinha”, além do receio estrutural sentido pela relação de gênero.

O maior mal de todos: o machismo

O machismo estrutural nas empresas e laboratórios é mais um grande fator que contribui para que as mulheres não se sintam à vontade, sem contar a diferença salarial. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, as mulheres ganham 30% a menos na área de Tecnologia da Informação (TI) em comparação a homens no mesmo cargo e com a mesma qualificação.

Por serem ambientes de maioria masculina, as mulheres são vistas como “invasoras” e logo surgem piadas, tentativas de desqualificação, silenciamento e mansplaining (quando um homem explica para a mulher algo que ela já sabe), além da famosa “brotheragem”, onde os “brothers” protegem uns aos outros. Muitas mulheres relatam que precisam estar provando o tempo todo que sabem o que estão falando e, mesmo assim, são continuamente ignoradas ou diminuídas.

É preciso lidar constantemente com uma atmosfera de tensão e cuidado, pois as atitudes são julgadas, independente da situação. Por exemplo: se uma mulher é firme, séria e reage aos descasos, é julgada como agressiva, histérica e “na TPM”; por outro lado, se tenta se manter neutra, não tem personalidade ou não aguenta o tranco. Ou seja, não existe saída para elas.

Por que precisamos de mais mulheres na tecnologia?

A Inteligência Artificial e o machine learning são duas áreas da Ciência da Computação que estão intimamente relacionadas. Basicamente, a IA busca simular a inteligência humana, enquanto o machine learning busca ensinar as máquinas a se comportarem como humanos. Em todos os casos, são humanos programando máquinas para representarem ações humanas em todos os aspectos possíveis, desde o movimento mais simples até tarefas complexas de compreensão e raciocínio.

Um dos maiores desafios para os pesquisadores e cientistas dessas áreas é ensinar a máquina a reagir diante do inesperado. Animais reagem por instinto, humanos reagem através do raciocínio rápido. Já as máquinas precisam ser especificamente programadas para desempenharem as atividades para as quais foram projetadas. E quem esquematiza todos esses processos, dados e códigos são, majoritariamente, homens.

Para que a IA seja cada vez mais precisa, é preciso que haja mais qualidade nos parâmetros e algoritmos de treinamento. É aí que entra o viés do programador, que irá determinar os conjuntos de dados a serem passados para a máquina.

Quanto menos diverso é o local onde nascem as IAs, mais erros e falhas nascem junto com elas. Em um cenário onde as IAs e as máquinas super-inteligentes estão cada vez mais presentes na sociedade e sendo decisivas em vários processos fundamentais, como processos seletivos, reconhecimento facial e até mesmo operações bancárias e jurídicas, é imprescindível que outros vieses além do masculino padrão seja levado em conta.

Atualmente, cerca de 12% das pessoas envolvidas com a pesquisa e criação de Inteligência Artificial são mulheres. Em um mundo onde aproximadamente metade da população é feminina e com cerca de 48% de participação da mulher no mercado de trabalho, não é possível que uma máquina dotada de inteligência artificial cometa erros como o BERT, tecnologia da Google, que associou 99 de 100 palavras como jóia, bebê, casa, dinheiro etc à homens.

Ou um sistema de contratação da Amazon que discriminava nomes femininos. Também é necessário que as IAs não sejam levadas a perpetuarem comportamentos preconceituosos, como Tay, o chatbot da Microsoft criado para interagir com os usuários do Twitter aprendendo a linguagem millenial e que, em questão de horas, estava reproduzindo discursos sexistas e racistas.

E a solução é em relação à mulheres na tecnologia?

Primeiramente, é importante ressaltar que não existe solução rápida e fácil. Identificar o problema já exige uma alta dose de reflexão e entendimento de como a sociedade está construída e baseada em fortes e históricos processos de exclusão da mulher como personagem protagonista e digna de reconhecimento. Por isso, é preciso que tanto homens quanto mulheres compreendam seus papéis e revejam suas atitudes.

Aos homens, cabe a tarefa de compreender posturas e ações tanto dentro do ambiente de trabalho quanto fora. Um exemplo é ajudando a erradicar os comportamentos tóxicos de amigos e colegas de trabalho. Às mulheres, o que vale é buscar entender que o sentimento de não-pertencimento a uma área de estudo ou trabalho não é nada além de uma imposição social injusta. Formar coletivos para desenvolver projetos de acolhimento, incentivo e propagação sobre Ciência e Tecnologia é uma das melhores maneiras de começar.

Além disso, os pais devem suscitar e estimular a curiosidade das meninas para as ciências e matemática, através de inúmeras tarefas lúdicas e até mesmo com brinquedos e conteúdos educativos. Os professores devem sempre reforçar a confiança das alunas e tratá-las da mesma forma que os meninos, ao invés de separar atividades de “menino” e de “menina”.

Tudo isso leva tempo, exige esforço e dedicação pessoal, mas cada pequena mudança de atitude conta muito para que as mudanças sejam efetivas e duradouras. Não é fácil mudar séculos de ideias profundamente enraizadas. Aos poucos, vamos trabalhando para desconstruí-las e, dessa forma, não só as IAs, mas também a nossa sociedade, evoluem e melhoram como um todo, criando um ambiente mais justo e igualitário para todos.

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